“As Cidadanias Mutiladas”, de Milton Santos, e “Mídia, Racismos e Representações do Outro: ligeiras reflexões em torno da imagem da mulher negra”, de Rosane Borges
Em “As Cidadanias Mutiladas”, Milton Santos inicia definindo o termo cidadão como “indivíduo dotado de direitos que lhe permitem não só se defrontar com o estado, mas afrontar o estado”. Um indivíduo completo, que sabe quais poderiam ser os seus direitos, que compreende o mundo em que transita.
Segundo Santos, a classe média no Brasil não é formada por cidadãos, já que não se preocupa em saber quais são seus direitos, e sim quais são os privilégios de que pode usufruir. É porque esta classe goza de privilégios que os demais não podem ter direitos. Porque uma classe não quer ser cidadã, as demais não podem sê-lo.
As mutilações da cidadania são várias, tais como:
- Negação a oportunidades de trabalho
- Desigualdade na remuneração
- Demarcação da localização das moradias
- Acesso restrito à circulação
- Acesso restrito à educação
- Acesso restrito à saúde, pela falta de “pistolões” que proporcionem o atendimento de qualidade em sistemas públicos de saúde
- Ausência de direito ao uso irrestrito das novas tecnologias
- Desigualdade de tratamento por parte da polícia e da justiça
Santos elenca também 3 dados centrais para entender o racismo:
- Corporalidade: dados objetivos
Este dado inclui a mobilidade e a capacidade de realizar coisas. Pensa o uso racional do território e dos recursos públicos. No Brasil, algumas empresas e algumas pessoas organizam as cidades para proveito próprio. Há um corporativismo que utiliza os recursos públicos e relega ao restante da população o resíduo do orçamento.
- Individualidade: dados subjetivos
A questão dos negros é mais grave porque é cumulativa, vem de um sistema de escravidão baseado no darwinismo social. Algumas pessoas ou raças são consideradas inferiores na escala da sociedade mundial. Este dado afasta a população negra das demais minorias, como as mulheres (que lutam de dentro da sociedade e, portanto, conseguem alguns avanços) e os índios (considerados parte da natureza que deve ser preservada). Os negros são considerados parte da produção. Por isso considera-se normal os milhões de pobres e desempregados no país, porque são considerados seres inferiores.
- Cidadania: dados políticos
Após 3 séculos de Iluminismo, o centro do universo deixa de ser o homem para ser o dinheiro. A democracia de mercado impõe competitividade, elogio à técnica. O homem é residual. Neste contexto “os mais fracos não hão de esperar nada e os negros muito menos”. São todos vítimas da violência do dinheiro e da informação. Há um assassinato cotidiano da ideia de nação.
Santos, porém, crê que a esperança possa vir desta globalização, que atua também de maneira cruel em relação aos considerados mais fracos. A migração constante poderia enriquecer o discurso, pensando novas formas de ver o mundo a partir das diferentes experiências. Segundo Santos, “os americanos propuseram ao mundo cheirar igual, com os famosos desodorantes. Não conseguiram”.
O autor aponta o difícil acesso às modernidades pelos mais pobres como um fator positivo, no sentido de que estes têm a real noção do “seu ser no mundo”, do seu “existir na formação social nacional”. [Neste sentido, Nicolau Sevcenko dizia que a América Latina tinha uma posição privilegiada de ver o mundo por um olhar periférico, não de dentro do olho do furacão, mas de fora da neurose coletiva. Ele dizia que o mundo estava no looping da montanha russa, de cabeça para baixo e em condições de repensar a história replanejando o futuro].
O texto de Santos propõe aos negros conhecer não só o seu campo, mas também o do outro. Conhecer, sobretudo, o “campo comum em que vivem todos os brasileiros”, para buscar lugares mais importantes dentro da sociedade. Para além dos guetos. Termina dizendo que “pedir aos negros que aceitem o discurso oficial e esperem tranquilos a evolução normal da sociedade é condená-los a esperar outro século”. Impossível.
Por sua vez, no texto “Mídia, Racismos e Representações do Outro: ligeiras reflexões em torno da imagem da mulher negra”, Rosane Borges aborda a maneira como a mídia interfere na maneira dos indivíduos enxergarem-se uns aos outros, contribuindo na formação do imaginário coletivo. Ela aponta a importância desta influência, uma vez que a sociedade tende, por si só, a estabelecer juízos de valor a partir de determinados critérios como melhor/pior, belo/feio, normal/desviante, e assim por diante.
Em relação aos negros, a autora observa que já existe uma crítica ao modo de representa-los de maneira uniformizada e preconceituosa. Pesquisadores já reclamam uma postura pluralista e voltada à diversidade, capaz de derrubar os habituais estigmas de racismo. É preciso apenas ouví-los.
Rosane cita uma amostragem do modus operandi da sociedade julgar seus pares a partir de determinados símbolos:
- Limusines negras são relacionadas a seres poderosos, geralmente ligados à política ou à economia.
- Livros atrás de entrevistados significa que os mesos são intelectuais.
- Mulheres chorando remetem-se a mães lamentando por algo com os filhos.
- Nomes omitidos e identidades ocultas falam de pessoas exiladas, desterritorializadas.
- Imagens e vozes distorcidas tem a ver com o terceiro mundo, os estranhos, os “outros”.
Seguindo estes modelos, espera-se que o mundo continue igual, conhecido, sem grandes surpresas que possam abalar as estruturas de poder. A autora cita a prática do “controle de rostos”, que facilita a escolha de quem pode entrar nos estabelecimentos privados, adquirir bens, habitar e trabalhar, sem causar danos aos proprietários. A mídia serve a estes propósitos, repetindo à exaustão as regras do aceitável, do considerado normal. Neste contexto o homem e a mulher negra são categorizados segundo critérios desumanizantes.
A postura da mídia é, majoritariamente, conservadora dos valores coloniais e eurocêntricos. As imagens do passado revestem-se de novas roupagens para assegurar a perpetuação dos privilégios de classe e raça. Em relação às mulheres negras, o modelo ainda lembra a Vênus de Hotentote, com formas protuberantes que aludem a uma hipersexualidade. De um lado a beleza sensual e de outro a suposta falta de controle sobre os instintos, a mulher negra serve de ícone para propagandas como a da cerveja Devassa, cujo slogam declara: “é pelo corpo que se conhece a negra”.
Autoras como Rosane Borges e Bel Hooks concordam em que o sistema patriarcal e machista dos tempos coloniais subjugava as mulheres negras considerando-as objetos de seus senhores brancos. Este infeliz julgamento permanece como pano de fundo para que se mantenha um julgamento estereotipado acerca das mesmas, ainda que há muito elas tenham ingressado no mundo intelectual, artístico e profissional de todas as áreas.
Como então quebrar este círculo vicioso e libertar a mulher negra da imagem da Vênus de 1789, exibida como objeto de atração e assustamento? Rosane crê que a saída esteja na comunicação contraintuitiva, na qual teorias são fundamentadas em estudos das diferenças, da diversidade, da pluralidade, rejeitando modelos cristalizados. Só assim a verdadeira imagem da mulher negra pode ser resgatada, devolvendo-a ao lugar digno que todo cidadão merece.
Sobre os autores
Milton Santos nasceu na região da Chapada Diamantina, filho de pais professores primários. Aos dez anos ingressou no Instituto Baiano de Ensino de Salvador, passando em primeiro lugar. Em 1948, formou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Desde a juventude atuou na política estudantil, criando jornais e participando da União Nacional dos Estudantes, da qual chegou a ser vice-presidente. Em 1956, foi convidado a realizar seu doutorado em Estrasburgo. Em 1960, já de volta, publicou o estudo “Mariana em Preto e Branco”. Com o golpe militar de 1964, foi preso e exilado. Neste período atuou como professor na Universidade de Toulouse, na França. Retornou ao Brasil em 1977, ingressando na USP como docente em 1984. Faleceu aos 75 anos, em 2001.
Rosane Borges é jornalista, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, integrante do grupo de pesquisa Midiato (ECA-USP) e professora do Curso de Especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP). Foi coordenadora nacional do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC) da Fundação Palmares, órgão do Ministério da Cultura, e professora do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde integrou o corpo docente do mestrado em Comunicação Visual. Coordenou a Revista Nguzu (NEAA-UEL) e escreve regularmente nos portais de notícias “Obsevatório da Imprensa”, “Geledés” e “Áfricas”. Integra a Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra (OAB-SP), a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-SP) e o Conselho Nacional de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (CNPIR) da Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). Possui diversos livros publicados, entre eles: Jornal: da forma ao discurso (2002), Rádio: a arte de falar e ouvir (2003) e Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004).