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GE – La conciencia de la mestiza e o feminismo da diferença – Textos de Gloria Anzaldúa, Claudia de Lima Costa e Eliana Ávila

Grupo de Estudos sobre os textos “La conciencia de la mestiza/rumo a uma nova consciência” de Gloria Anzaldúa e “Gloria Anzaldúa, a consciência mestiça e o feminismo da diferença”, de Claudia de Lima Costa e Eliana Ávila.

O primeiro texto, uma edição de 2005 da Revista Estudos Feministas da UFSC,  inicialmente lançado em 1987,  é parte de seu livro Borderlands/La Frontera: The New Mestiza.

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Numa espécie de escrita mestiza, Anzaldúa se utiliza de uma forma textual construída sobre duas línguas e alguns dialetos indígenas (inglês e espanhol, no nosso caso, português e espanhol).

No segundo texto, há o debate sobre os conceitos de consciência mestiza e feminismo da diferença pelas autoras Costa e Avila, através dos escritos de Anzaldúa.

Em La Conciencia Mestiza, Gloria cria uma mistura de elementos textuais acadêmicos e poéticos, com recorrentes citações poéticas em destaque, as quais norteiam as reflexões mais argumentativas. Há diferentes “gêneros textuais e registros discursivos polivalentes. Mistura de poesia, autobiografia espiritual, ficção, discurso analítico (…).” ( Costa; Ávila, 2005). E há sempre o contexto da fronteira, seja da origem da autora, entre México e EUA,  seja  entre culturas,  raças, a partir dos olhos da mestiza.

Jose Vasconcelos, filósofo mexicano, vislumbrou una raza mestiza, una mezcla de razas afines, una raza de color – la primera raza síntesis del globo. Chamou-a de raça cósmica, la raza cósmica, uma quinta raça, abarcando as quatro raças principais do mundo. Em oposição à teoria da raça ariana pura, e à política de pureza racial praticada pela América branca, sua teoria é de inclusão. Na confluência de duas ou mais cadeias genéticas, com os cromossomos constantemente ultrapassando fronteiras, essa mistura de raças, em vez de resultar em um ser inferior, gera uma prole híbrida, uma espécie mutável, mais maleável, com uma rica carga genética. A partir dessa “transpolinização” racial, ideológica, cultural e biológica, uma consciência outra está em formação – uma nova consciência mestiza, una conciencia de mujer. Uma consciência das Fronteiras. (Vasconcelos apud Anzalúa, 2005).

Porque eu, uma mestiza, continuamente saio de uma cultura para outra, porque eu estou em todas as culturas ao mesmo tempo, alma entre dos mundos, tres, cuatro, me zumba la cabeza con lo contradictorio. Estoy norteada por todas las voces que me hablan simultáneamente (Anzaldúa, 2005).

Ao discutir o texto, fizemos uma espécie de introdução sobre como o fato de que estudar sobre o feminismo negro e interseccional gera questionamentos necessários sobre quais marcadores estão nos atravessando enquanto minoria (mulheres), e de outra forma, quais outros nos atravessam enquanto privilégio (mulheres brancas universitárias urbanas e de classe média, por ex.), e por que não, quais outros nos atravessam enquanto mestizas, no sentido que propõe Anzaldúa, de uma consciência pessoal interseccional mais ampla, entre elementos raciais, de gênero, de cultura, de história.

[Começei a pensar: “Sim, sou chicana, mas isso não define quem eu sou. Sim, sou mulher, mas isso também não me define. Sim, sou  lésbica, mas isso não define tudo que sou. Sim, venho da classe proletária, mas não sou mais da classe proletária. Sim, venho de uma mestiçagem, mas quais são as partes dessa mestiçagem que se tornam privilegiadas? Só a parte espanhola, não a indígena ou negra.” Começei a pensar em termos de consciência mestiça. O que acontece com gente como eu que está ali no entre-lugar de todas essas categorias diferentes? O que é que isso faz com nossos conceitos de nacionalismo, de raça, de etnia, e mesmo de gênero? Eu estava tentando articular e criar uma teoria de existência nas fronteiras. […] Eu precisava, por conta própria, achar algum outro termo que pudesse descrever um nacionalismo mais poroso, aberto a outras categorias de identidade.]  (Anzaldúa apud Costa e Ávila, 2005)

A pergunta que ressoa-nos é “quem sou eu?” E não é à toa, pois somos todas e somos nenhuma.

A ambivalência proveniente do choque de vozes resulta em estados mentais e emocionais de perplexidade. A contenda interior resulta em insegurança e indecisão. A personalidade dupla ou múltipla da mestiza é assolada por uma inquietude psíquica. Em um estado constante de nepantilismo mental, uma palavra asteca que significa partido ao meio, Lamestiza é um produto da transferência de valores culturais e espirituais de um grupo para outro. Ser tricultural, monolíngüe, bilíngüe, ou multilíngüe, falando um patois, e em um estado de transição constante, a mestiza se depara com o dilema das raças híbridas: a que coletividade pertence a filha de uma mãe de pele escura? (Anzaldúa, 2005).

Existem marcadores de classe, de gênero, raciais, de faixa etária, e ainda outros menos evidentes, como de saúde (pessoas com deficiências, por ex., ou doenças descapacitantes) ou de filiação. Nós transitamos muitas vezes, dependendo de um lugar para outro, entre alguns de classe, e de raça, por exemplo. Mas existe um problema estrutural de autoridade radicalizado.

O problema da exclusão estrutural é que ela nos interpõe situações em que se permanece dentro de um silenciamento da realidade das mulheres; por exemplo, as mulheres negras da periferia, dentro de uma sociedade familiar patriarcal branca tradicional, de classe média.

…E foi recentemente que soube, através de uma mulher pesquisadora negra, que a média dos assassinatos de mulheres brancas caiu em percentual e que a de mulheres negras aumentou consideravelmente. E que isso demonstrava o quanto a política pública de proteção à mulher, com a lei Maria da Penha, não é feita para a periferia das cidades, para o contexto onde existem mais mulheres negras.

Somos seres com um contexto muito bem localizado, com marcadores e trajetórias específicos, e no entanto lidamos com a fronteira de valores culturais, econômicos, sociais, dia-a-dia. Uma mulher branca universitária de classe média não saberá quais pressões e marcas carrega uma mulher negrada da mesma classe social. Somos situados historicamente e precisamos ouvir mutuamente sobre nossas lutas.

É preciso nos informarmos do que as mulheres e homens negrxs, xs índixs, as chicanxs, xs nordestinxs, têm a dizer. Pois as mudanças sociais precisam ser articuladas a partir do que elxs digam, constatem e decidam. E se devemos adquirir uma consciência planetária de raca humana, também devemos perceber as características locais de tradição, etnia, religião que cada pessoa  e grupo carrega singularmente, em cada comunidade. Porque cada comunidade estará pré-disposa de certa maneira, cada política pública deve ser adaptada de acordo com esses elementos locais, ou então, corre-se o velho risco do assistencialismo antropocêntrico branco, ineficiente e excludente.

O anglo branco oprime o homem chicano e o homem pobre, que por sua vez oprime o homem negro e todos oprimem as mulheres e as mulheres por sua vez, brancas, oprimem as negras, e as mulheres e homens por sua vez, oprimem as crianças e animais….Não existe uma hierarquia de valor nesta observação. Muito pelo contrário, ela é a verificação de que existe uma falsa conotação de que estas hierarquias de valor, que atuam sobre nós como marcadores, seriam intrínsecas  às pessoas (quase como castas), e isso é justamente o miasma trazido pela discriminação da mestiza e das minorias.

Dentro de nós e dentro de la cultura chicana, crenças arraigadas da cultura branca atacam crenças arraigadas da cultura mexicana, e ambas atacam crenças arraigadas da cultura indígena. De forma subconsciente,vemos um ataque contra nós e nossas crenças como uma ameaça e tentamos bloqueá-lo com um posicionamento contrário. (Anzaldúa, 2005)

Mas os marcadores não são fixos. Eles nos fazem transitar por onde temos privilégios ou marginalidades.  Estas condições entre opressor e oprimido transitam continuamente entre nossos papéis sociais, de gênero, de classe, e de como eles se desfazem ou se reconstituem dependendo de onde estamos, se estamos no nosso contexto de “origem” (nacionalidade, filiação, etc), ou em outros totalmente fora de nosso modo de ser lidx. Por exemplo, uma brasileira morena com traços árabes ou negros ou mesmo judeus, no Brasil, ainda é lida enquanto branca. Nos EUA ou Europa, provavelmente será lida de outra forma e consequentemente, tratada segundo aqueles pressupostos.

Percebemos que os comportamentos hegemônicos tentam se apropriar de um padrão (de beleza, de riqueza, etc)  e nos cooptar de acordo com ele, assim “marcando” tudo que sai da norma, como “diferente”. Mas essa diferença não possui um modelo natural, possuidor de alguma originalidade ou um valor intrínseco, como algum modelo qualquer a ser seguido: não é o negro que é diferente do branco; somos todos diferentes uns dos outros. Ver a diferença apenas no outro nos coloca sob certos padrões, e dentro de uma perspectiva colonialista, incide sobre modos de ver totalmente condicionados culturalmente e contextualmente -e não sobre constituições inatas ou essenciais das pessoas – criando falsas percepções de quem somos. Por isso é importante nos questionarmos quem somos por trás destas máscaras sociais embutidas e sobrepostas em nós mesmxs, mas que não nos constituem como essência. São reações sobre opressões e reações opressivas, enquanto  o problema for de autoridade.

Mas haverá que se deixar a margem do contraposicionamento:

Contudo, não é suficiente se posicionar na margem oposta do rio, gritando perguntas, desafiando convenções patriarcais, brancas. Um ponto de vista contrário nos prende em um duelo entre opressor e oprimido; fechados/as em um combate mortal, como polícia e bandido, ambos são reduzidos a um denominador comum de violência. O contraposicionamento” refuta os pontos de vista e as crenças da cultura dominante e, por isso, é orgulhosamente desafiador. Toda reação é limitada por, e subordinada à, aquilo contra o qual se está reagindo. Porque o “contraposicionamento” brota de um problema com autoridade – tanto externa como interna – representa um passo em direção à liberação da dominação cultural. Entretanto, não é um meio de vida. A uma determinada altura, no nosso caminho rumo a uma nova consciência, teremos que deixar a margem oposta, com o corte entre os dois combatentes mortais cicatrizado de alguma forma a fim de que estejamos nas duas margens ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, enxergar tudo com olhos de serpente e de águia. Ou talvez decidamos nos desvencilhar da cultura dominante, apagá-la por completo, como uma causa perdida, e cruzar a fronteira em direção a um território novo e separado. Ou podemos trilhar uma outra rota. As possibilidades são inúmeras, uma vez tenhamos decidido agir, em vez de apenas reagir. (Ibidem).

Parece haver uma necessidade de estarmos atentas pra esses agenciamentos contextuais e para essas máscaras que vêm junto deles, nos sendo impostas. Talvez seja preciso um constante questionamento sobre quem somos, pois esses marcadores confundem nossa própria percepção de nós mesmxs enquanto seres paradoxais, bilíngües, cheios de dialetos, com certa nacionalidade, mas pertencentes à uma mistura inumerável de raças, de patuás, de linguagens, de interlocuções.

Quem é, são esse(s) personagem(ns), essa(s) pessoa(s)?

Costa e Ávila  (2005), sobre Anzaldúa, enfatizam que:

“os terrenos da diferença são mais que nunca espaços de poder, a autora complica radicalmente o discurso feminista da diferença. Migrando pelos entre-lugares da diferença, mostra como esta é constituída na história e adquire forma a partir de articulações sempre locais – suas mestiçagens múltiplas revelam simultaneamente mecanismos de sujeição e ocasiões para o exercício da liberdade.”

E é entre esses lugares que a mestiza adentra a ambivalência dos marcadores cruzados e se reinventa outra. A “ ambigüidade e a indecidibilidade que acompanham o ato tradutório no qual Anzaldúa se engaja têm o efeito de perturbar os binarismos culturais.” (ibidem).

Como diz Glória:

A nova mestiza enfrenta tudo isso desenvolvendo uma tolerância às contradições, uma tolerância às ambigüidades. Aprende a ser uma índia na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vista angloamericano. Aprende a equilibrar as culturas. Tem uma personalidade plural, opera em um modo pluralístico – nada é posto de lado, o bom, o ruim e o feio, nada é rejeitado, nada abandonado. Não apenas sustenta contradições como também transforma a ambivalência em uma outra coisa. Ela pode ser jogada para fora da ambivalência por um acontecimento emocional intenso e, geralmente, doloroso, que inverte ou resolve a ambivalência. Não estou certa exatamente como. É uma atividade que acontece subconscientemente. É uma atividade feita pela alma. Aquele fulcro ou ponto específico, aquela junção onde se situa a mestiza, é onde os fenômenos tendem a colidir. É onde ocorre a possibilidade de unir tudo o que está separado. Essa união não se trata da mera junção de pedaços partidos ou separados. Muito menos se trata de um equilíbrio entre forças opostas. Ao tentar elaborar uma síntese, o self adiciona um terceiro elemento que é maior do que a soma de suas partes separadas. Esse terceiro elemento é uma nova consciência – uma consciência mestiza – e, apesar de ser uma fonte de dor intensa, sua energia provém de um movimento criativo contínuo que segue quebrando o aspecto unitário de cada novo paradigma. En unas pocas centúrias, o futuro pertencerá à mestiza. Porque o futuro depende da quebra de paradigmas, depende da combinação de duas ou mais culturas. Criando um novo mythos – ou seja, uma mudança na forma como percebemos a realidade, na forma como nos vemos e nas formas como nos comportamos – Lamestiza cria uma nova consciência. O trabalho da consciência mestiza é o de desmontar a dualidade sujeito–objeto que a mantém prisioneira, e o de mostrar na carne e através de imagens no seu trabalho como a dualidade pode ser transcendida. A resposta para o problema entre a raça branca e a de cor, entre homens e mulheres, reside na cicatrização da divisão que se origina nos próprios fundamentos de nossas vidas, nossa cultura, nossas línguas, nossos pensamentos. Extirpar de forma massiva qualquer pensamento dualista no indivíduo e na consciência coletiva representa o início de uma longa luta, que poderá, com a melhor das esperanças, trazer o fim do estupro, da violência, da guerra. (Anzaldúa, 2005).